Pão Diário

Com efeito, no que tange às coisas futuras, Salomão concilia facilmente as deliberações humanas com a providência de Deus. Pois, assim como se ri da obtusidade daqueles que, à parte do Senhor, audaciosamente empreendem o que lhes apraz, como se não fossem governados por sua mão, também desta sorte assim fala em outro lugar [Pv 16.9]: “O coração do homem planeja seu caminho, e o Senhor lhe dirigirá os passos”, deixando evidente que não somos de modo algum impedidos pelos eternos decretos de Deus de, sob sua vontade, não só olharmos por nós mesmos, como também de regularmos todas as nossas coisas. Isso nem mesmo carece de razão clara. Afinal de contas, aquele que nos limitou a vida com seus termos, ao mesmo tempo, depondo diante dele nossa solicitude, proveu-nos de meios e recursos de conservá-la; também nos fez capazes de antecipar os perigos; para que não nos apanhassem desprevenidos, ministrou-nos precauções e remédios.
Agora, pois, salta à vista qual é nosso dever, isto é, se o Senhor nos confiou a
proteção de nossa vida, então que a cerquemos de cuidados; se oferece recursos,
então que os usemos; se nos previne dos perigos, então não nos lancemos temerariamente a eles; se fornece remédios, não os negligenciemos. Com efeito, dirão que nenhum perigo nos fará mal, se não lhe é ordenado que nos prejudique, pois isso de maneira nenhuma se pode evitar.
Mas, ao contrário, que sucederá se os riscos não são fatais, que o Senhor já destinou remédios para repeli-los e superá-los? Vê como te é ajustado o raciocínio à ordem da administração divina. Tu concluis que não se deve precaver do perigo, porque, desde que não seja fatal, mesmo à parte de qualquer precaução o haveremos de ludibriar. O Senhor, no entanto, prescreve que te acauteles, porque não quer que te seja fatal.
Esses desvairados não consideram que lhes está debaixo dos olhos, que as
artes de se aconselhar e se acautelar foram inspiradas pelo Senhor aos homens, as
quais se tornam subservientes à providência na conservação da própria vida, da
mesma forma que, em sentido contrário, por negligência e inércia, atraem sobre si
os males que lhes impôs. Pois, donde acontece que o homem providente, enquanto
cuida bem de si, se desvencilha até de males iminentes, o insipiente pereça levado
por temeridade, senão que tanto a insipiência quanto a prudência são instrumentos
da divina administração para um e outro desses dois aspectos?
Essa é a causa por que Deus quis que não conhecêssemos o futuro, para que,
sendo ele incerto, nos preveníssemos e não deixássemos de usar os remédios que ele
nos dá contra os perigos, até que, ou os vençamos, ou sejamos deles vencidos.
Por esse motivo, ponderei de antemão que a providência de Deus nem sempre se manifesta a descoberto; ao contrário, é como se Deus, de certo modo, a vestisse dos
meios aplicados.