As violências contra os povos indígenas em nosso país são
avassaladoras. A dor, as ameaças, as invasões, as torturas, as agressões
cotidianas expressam as condições a que os povos indígenas continuam sendo
submetidos. São a trágica consequência da política indigenista praticada pelo
governo brasileiro. No ano de 2014 se repetiram, talvez com mais crueldade
ainda, as violações aos direitos fundamentais das comunidades indígenas no
Brasil. A ampliação, pelo governo brasileiro, do poder político dos ruralistas
na decisão sobre as demarcações das terras acirrou a violência em todas as
regiões do país. Parlamentares ligados aos setores que consideram a terra
apenas como fonte de exploração e lucro promoveram audiências públicas para
instigar a população a tomar posição contra os direitos dos povos indígenas
inscritos na Constituição Federal. Os dados coletados e sistematizados neste
relatório pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) evidenciam conflitos
extremamente graves. Nas regiões Sul, Nordeste e Centro-Oeste, comunidades
indígenas foram Jorge Valente A experiência da coletividade e a manutenção dos
vínculos ancestrais, características dos povos indígenas, somente são possíveis
em suas terras tradicionais, porque é nelas que podem construir um modelo de
Bem Viver Conselho Indigenista Missionário - Cimi 11 atacadas a tiros, gerando
pânico e causando entre as pessoas, incluindo crianças, jovens e idosos, uma
tremenda angústia e medo de morrer. Pistoleiros atacaram, em Mato Grosso do
Sul, a comunidade de Pyelito Kue e, na Bahia, a comunidade Tupinambá. No Rio
Grande do Sul, uma população enraivecida do município de Erval Grande expulsou
indígenas acampados nas margens de uma rodovia estadual. Com apoio da polícia
militar e sem ordem judicial, centenas de moradores foram ao acampamento dos
Kaingang e obrigaram os indígenas a embarcar num ônibus que os transportou para
a cidade de Passo Fundo, a mais de 130 km de distância. Jogaram seus parcos
pertences sobre a carroceria de um caminhão e os despejaram em frente à sede da
Fundação Nacional do Índio (Funai) de Passo Fundo. As polícias Federal e
Militar, alegando promover investigações ou cumprir mandados de reintegração de
posse, chegaram diversas vezes a praticar violências em terras indígenas e
extrapolaram suas funções e atribui- ções legais. Nesse sentido, são
emblemáticas as prisões ilegais e torturas praticadas na área do povo
Tubinambá, na Bahia. No Rio Grande do Sul, a Polícia Federal adentrou a área
Kandóia e, sob o pretexto de cumprir ordem judicial de busca e apreensão,
invadiu os barracos dos indígenas. Mantidos em uma pequena igreja, foram
obrigados a fornecer saliva, supostamente para a realização de exames
genéticos. Os dados que apresentamos neste Relatório mostram um aumento
alarmante de assassinatos. Em 2014 ocorreram 138 casos de homicídio. Alguns
deles resultaram de conflitos internos, em função da disseminação de bebidas
alcoólicas nas áreas indígenas. Outros foram consequência da situação de
confinamento populacional, especialmente nas minúsculas reservas em Mato Grosso
do Sul. Outros, ainda, resultaram de conflitos fundiários ou de conflitos com
madeireiros que invadiram terras indígenas já demarcadas. Intolerância,
ganância e preconceito continuam motivando as agressões aos direitos indígenas.
A omissão ou negligência do governo acentua a gravidade das ocorrências. Apesar
de parâmetros constitucionais favoráveis aos povos originários, os indígenas
são condenados a conviver com a violência cotidiana e continuam vítimas de
ações dos setores e grupos econômicos que, impunemente, se opõem à Carta Magna
do Brasil e planejam sua desregulamentação. O clamor dos povos indígenas
eleva-se hoje em variados movimentos de resistência e em mobilizações que
expressam, por um lado, a tensão e aflição que os atemorizam, mas, por outro
lado, a esperança, sempre de novo nutrida, num futuro humano, justo e pacífico.
A demarcação das terras indígenas não é um favor que os índios mendigam do
governo. É a Constituição Federal que o obriga a demarcá-las, defendê-las e
fiscalizá-las. Só assim cessarão as invasões e a depredação, estopim da maioria
dos conflitos e mortes. Como o homem assaltado e deixado semimorto à beira da
estrada entre Jerusalém e Jericó, os povos indí- genas no Brasil encontram-se
hoje feridos entre o Chuí e o Oiapoque, esperando por quem se compadeça deles e
venha em seu socorro. Qual é a nossa atitude? Passamos ao largo, fingindo que
não os vemos? Ou nos tornamos próximos de quem precisa de nosso apoio e de
nossa ajuda? Mera compaixão não basta. Os sentimentos de dó e piedade têm que
traduzir-se em ações concretas de misericórdia. “Qual dos três, em tua opinião,
tornou-se próximo do que caiu nas mãos dos assaltantes?” perguntou Jesus ao
mestre da lei e este responde: “Aquele que usou de misericórdia para com ele.”
E Jesus ordena: “Vai e faze tu o mesmo” (cf. Lc 10,25-37). A misericórdia,
porém, está indissoluvelmente ligada à justiça, ao respeito e à solidariedade.
Altamira, 3 de abril de 2015